Nós gatos… A proibição

Manuel era a felicidade em forma pessoa (ou melhor –  em forma de gato). Estava namorando a linda Morena, nunca o mundo lhe parecera tão belo, tão perfeito. Nunca uma cidadezinha perdida no interior deste país lhe parecera o melhor lugar do mundo. E aquela cidadezinha era o melhor lugar do mundo pelo simples motivo que era naquela cidadezinha que morava sua Morena.

Ele andava pela cidade todo Pimpão, peito estufado, o rabo em pé… todo empinado. O pelo antes branquinho estava todo pintado de lama, antes lustroso e liso agora estava cheio de carrapicho de tanto se enfiar no meio do mato ao lado da sua Morena perseguindo pequenos animais típicos do local. Fazia dias e dias que não via seu humano, tamanho mergulho que dera naquela paixão. Enquanto corria pelo campo… amarelinho… da plantação de trigo pensou no seu humano e como ele acharia aquilo divertido se pudesse correr com ele naquele lugar. O sol poente batia nos trigal e tudo ficava ainda mais dourado. E o cheiro invadia o ar e impregnava nas suas narinas e na sua pelagem.

Estou com saudades do meu humano – disse ele no comecinho daquela noite para Morena – Acho que vou vê-lo hoje à noite. Faça isso… Família é importante. Disse Morena séria. Você tem que cuidar do seu humano, certificar-se que ele está bem, está seguro. Ele concordou com um sorriso. Esfregou a cabeça nela em despedida e partiu para o local onde o seu humano estava alojado. No caminho primeiro ele ficou alegre. Estava mesmo com saudades daquele humano danado. Ele o veria chegar, e faria festa e perguntaria, onde você andou seu peralta? Ia aninha-lo no seu peito e coçar sua barriga. Talvez ele ganhasse umas sardinhas. Se tivesse sorte um pote de atum, eram seus favoritos.

Mas no meio do caminho, ele viu os caminhões indo e vindo, entrando e saindo. Então ele se lembrou que, aquele lugar, como tantos outros que visitara com ele, era temporário… chegou no lugar, foi procurar seu humano, já estava desolado com a possibilidade de ter que ir embora e nunca, nunca mais ver a sua Morena.  Era seu primeiro amor. E o primeiro amor, diziam, tinha dessas coisas de abalar tudo e mudar todas as coisas.

– Manuel!!! Rapaz onde você andou??? – o seu humano o avistara quando ele entrava no quarto conjunto, abandonara o jogo de dominós e correra até ele e o apanhara. – Eu estava morrendo de preocupação! Achei que alguém tinha roubado você ou que tivesse sofrido algum acidente. – Apontou o dedo para ele. – Nunca mais faça isso!!! Nada de sumir assim!!! Você está todo mulambento! Olha esse pelo cheio de carrapicho! – disse em tom de desaprovação. – Ai ai ai, vai dar um trabalho danado limpar você seu porcão!


– Onde você vai rapaz??? Olha o jogo!!! algum companheiro gritou da mesa de jogo enquanto ele se afastava.

– Vou dar um jeito neste molambo, olha a só! Aposto que tá cheio de carrapatos também. Por Deus se eu tiver que gastar meu soldo em remédio pra carrapato pra você não vai ser bonito. Arrumo uma gaiola e tranco você nela até a gente ter que ir embora. – Manuel ficou deprimido de verdade. Seu humano não ficara feliz em vê-lo, ficara era bravo com o estado deplorável que ele se encontrava. E ele começou a falar e falar e falar sem parar enquanto executava a difícil tarefa de deixar ele limpinho e com o pelo branco como a neve.

– Onde você andou hein Manequinho? – perguntou então mais calmo. – Arrumou uma namorada foi??? – Manuel miou baixinho, como quem dizia… é… foi isso. – Foi isso mesmo né seu pilantra??? Danado!!! Safadão!!! Só espero que não tenha sido nenhuma vira-latas sem pedigree. Você é um príncipe!!! Tem que namorar princesa!!! Como assim??? Manuel ficou miando e olhando longamente para seu humano. Morena era uma princesa… quanto a isso ele não precisava se preocupar.

– E nessa cidadezinha onde Judas Perdeu as botas não tem princesa nenhuma digna do meu Manequinho. O quê????!!! – Só tem umas gatas vira-latas que não servem para nada a não ser comer ratos e juntar pulgas. E você está proibido de enroscar com essas gatas da ralé! Manuel ficou revoltado, começou se remexer e dar show dentro da bacia onde o seu dono estava. – Ei o que deu em você seu pirado! Manuel pulou e esperneou, arranhou o humano e todo ensaboado como estava fugiu da banheira improvisada.- Volte aqui seu doido! Eu nem terminei de dar banho em você! Vai ficar todo sujo novamente!!!

Não!!! Não volto nunca!!! Ninguém vai me proibir de amar minha Morena!!! Eu fujo!!! Fujo com ela para longe de tudo e de todos!!! Manuel pôs se a correr loucamente para longe dos gritos do seu humano. Ninguém ia lhe dizer que ele não podia ficar perto de Morena, que ela era vira-latas. Ninguém ia proibir nada!!! Correu, correu, correu… ia procurar Morena, os dois iam fugir juntos!

Continua…

Nós Gatos… Um namoro

Manuel era a felicidade em pessoa. Passeando pela noite calma de cidadezinha do interior. Uma noite sem nuvens no céu, podia se ver todas as estrelas brilhando lá em cima no firmamento. Um número infinito de estrelas… Sempre que voltava para a cidade grande com seu dono, ele sentia falta de olhar para o céu e ver as estrelas… Na cidade cheia de prédios e fumaça não era possível vê-las. Isso sem falar da paisagem…

Não que ele não gostasse dos prédios, alguns deles eram até bem bonitos mas não era a mesma coisa, a visão majestosa daquilo que a mãe natureza criava quase sempre sobrepujava qualquer coisa que o ser humano construísse… Pelo menos essa era a opinião de Manuel… Tá certo que ele era apenas um animal, apenas um gato… Mas gatos também tinham direito a uma opinião não???

Admirou novamente a bela paisagem iluminada pelo luar. Tudo isso somado ao fato de que finalmente estava passeando com a linda Morena. A gata mais linda de todo o planeta. Novamente, está era apenas a opinião de Manuel. A gata que cativara sua atenção por dias, a gata que cativara seu coração vagabundo.

Ela trotava calmamente pela estrada enquanto Manuel trotava alegremente ao seu lado, ora mais adiante, ora mais atrás, ora ele corria e circulava ao redor dela… Tudo isso sempre com um sorriso na cara branca. E conversavam alegremente. Contando um para o outro sobre suas vidas. Manuel contava como o seu dono o encontrara, como o adotara e descrevia para Morena todas as cidades que já passara, os lugares que conhecera, todos os diferentes lugares e as diferentes pessoas e as diferentes comidas.

Enquanto que Morena contava-lhe que sempre vivera na fazenda, falava de sua família e de como amava sua vida com seus humanos na fazenda. Suas tarefas e de como elas eram importantes. De como ela precisava tomar conta de todos eles e de como isso era sua responsabilidade. Manuel ficaram impressionado. Nunca parara para pensar que um simples gato poderia ter tanta responsabilidade para com seu humano. Manuel achava que sua função como animalzinho de estimação era, brincar com seu humano e deixar que ele tomasse conta de Manuel e o alimentasse e o mantivesse aquecido… Não o contrário. Falou isso para Morena…

E ela tratou de explicar para ele que não, que na verdade eles tinham que tomar conta dos humanos, porque eles eram mais rápidos, ágeis e tinham os instintos muito mais aguçados. Morena subiu numa pedra grande de onde podiam avistar toda a campina iluminada pela lua.

– Eu nunca tinha imaginado isso. – Manuel falou coçando a cabeça.

– É nossa responsabilidade tomar conta deles.- disse ela solenemente. Ele olhou profundamente nos olhos dela e novamente ficou como que hipnotizado por aquele par de olhos.

– Se você está dizendo isto eu acredito, linda Morena. – disse com um sorriso galanteador. Desta vez ganhou um sorriso de volta. – Vou tomar mais conta do meu humano a partir de hoje.

Os dois permaneceram sentados lado a lado na pequena elevação observando a paisagem por um longo tempo, sem trocar nenhuma palavra. Apenas felizes de estarem na companhia um do outro em silêncio. Talvez o amor fosse isso… encontrar uma pessoa que te completasse sem precisar de mais nada, de palavras de atitudes. Alguém que fizesse com que você tivesse vontade de caminhar junto e ficar horas sentados juntos em silêncio numa linda noite de luar.

Continua…

Família

Depois que a dona do hotel deixou Kael sozinha em seu quarto ela se jogou na cama, estava exausta. Paulo se ajeitou no quarto e foi até o quarto de Kael. Ele bateu na porta e ouviu um ‘entre’ abafado pela porta pesada. Ele entrou. Kael não se moveu de onde estava.

– Então… parece que você finalmente sabe alguma coisa sobre sua família. – disse ele sentando-se ao lado dela.

– Pois é… mas fico com a sensação de que tem muito mais história…- Paulo assentiu. – Meu Deus eu estou tão cansada… acho que eu poderia dormir por um mês.- disse ela mudando de assunto.

– Por que você quis se hospedar aqui em vez da mansão??? – Ela abriu os olhos. – Quero dizer, tem algum motivo?? Ou.. é mais um daqueles seus ‘avisos do sexto sentido’?- perguntou ele com um sorriso irônico, apesar dele já estar acostumado com essas coisas de Kael. – Não sei ao certo… – disse ela encarando o teto. – Mas acho que você pode dizer que é mais um dos meus avisos… não foi uma razão específica, foi, uma sensação estranha.

– Ela disse que… nossa chegada deve ter deixado o Dr Franco perturbado.- disse ele coçando a cabeça. – Acha que ele ficou perturbado.

– Não sei… Mas não gostei dele ficar me encarando o tempo todo como se eu fosse um ET… – fez uma longa pausa. – Bem, de qualquer forma… se eu não tinha uma razão então, tenho uma agora para não ficarmos na casa dele. – disse ela fechando os olhos novamente.

– Certo.

Aqui não é tão ruim… não é um pulgueiro.- deu uma gargalhada. – Vou deixar você dormir. Você está um caco… amanhã temos um monte de coisas para fazer.

– Obrigada.- Kael riu, levantou-se para acompanhar a saída de Paulo e fechar a porta. Jogou-se na cama novamente, mas apesar do cansaço não conseguia desligar a cabeça, muita coisa acontecendo ao mesmo tempo. Sempre foi dolorido para ela não lembrar da infância, dos pais… Mas o que mais a estava incomodando ainda era não saber porque seu tio não lhe contara toda aquela história. Ela tivera que ouvir aquilo de uma completa estranha… isso a irritava profundamente porque confiava tanto no tio, jamais imaginou que ele mentiria para ela… tinha que ter uma razão para isso… ele tinha que ter uma boa razão.

Acabou pegando no sono enquanto os pensamentos giravam incessantemente na sua cabeça. Adormeceu deitada como estava, vencida pelo cansaço de horas de viagem somadas ao estresse. Muito cedo na manhã seguinte ela acordou com um som longínquo de batidas na porta…

– Ei dorminhoca, hora de acordar! – Kael levou alguns segundos para se lembrar onde estava… Levantou-se, descabelada e abriu a porta. – Você dormiu assim? Espantou-se Paulo entrando no quarto sem nenhuma cerimônia. Ela assentiu sem palavras, olhou para o relógio… sete e meia… deixou-se cair novamente na cama. – Não, não, não… vc não vai dormir de novo. Você tem que comer alguma coisa. Vamos, levante-se vá tomar um banho, escovar os dentes, colocar outra roupa… eu espero você lá embaixo para o café… – Kael era uma verdadeira marmota de manhã e não gostava de conversar enquanto Paulo era absolutamente o contrário. Viu-o sair e fechar a porta… virou para o outro lado e voltou a dormir… precisava descansar… sete e meia era cedo demais para ela.

A menina sem memória

– O que deu em vc?? Sair que nem um doida a esmo por uma cidade que vc não conhece, vc poderia ter se perdido… – Kael mal ouvia a ladainha de Paulo, já havia pedido desculpas mas… ele sempre achava que tinha que tratá-la como uma irmã mais nova inconsequente.

– Este lugar me dá nos nervos. – disse ela. – Esta casa imensa mais ainda. – cochichou. – Vamos para o hotel da cidade.

– Aquele pulgueiro? – Paulo baixou a voz. – Você quer mesmo trocar isso.- gesticulou em volta. – Por um quarto naquele pardieiro? Aposto que não tem nem banheiro independente. É daquelas pensões que vc tem que ficar na fila do banheiro no corredor.

– Se vc quiser ficar aqui muito bem… Eu não vou ficar, essa casa me dá calafrios. O jeito que essas pessoas me olham, como se me conhecessem me dá ainda mais calafrios.

– Vai ver eles conhecem… – ele murmurou e ganhou um olhar atravessado.

– Que seja, eu estou indo… – disse apanhando a mala e saindo do quarto quase tropeçando em Franco.

– E para onde vocês estão indo?- Franco ele perguntou. Paulo titubeou, gaguejou, não queria ser indelicado.

– Para o hotel. – respondeu Kael sem muita cerimônia, tato não era uma das coisas que ela podia se gabar de possuir. Franco quis protestar mas ela não lhe deu tempo. – Agradecemos a sua gentil oferta de nos hospedar, mas… acho que ficaremos mais à vontade num hotel, não queremos incomodar e estamos acostumados a termos nosso próprio espaço. Não precisamos e muito luxo, apenas de um lugar reservado onde possamos repousar. – Franco engoliu em seco obviamente ofendido com a recusa da moça.

– É… sim… er… agradecemos.- Paulo endossou com um sorriso sem graça.- Eu vou pegar a minha mala… encontro você no carro? – Kael assentiu com um movimento de cabeça e seguiu em direção à saída. Pensou ter visto uma faísca de raiva nos olhos do misterioso anfitrião. Ele acompanhou-a até a porta e olhou-a fixamente nos olhos por um longo instante. Paulo chegou meio correndo.

– Se precisarem de alguma coisa… não se acanhem.- disse Franco estendendo a mão para Paulo, que o cumprimentou efusivamente e depois para Kael, demorou um instante mais que o necessário segurando a mão dela. Depois, com a mesma faísca nos olhos virou-se bruscamente e sumiu mansão a dentro.

– Parabéns! Você pisou nos calos de uma pessoa que aparentemente deve ser uma das mais ricas e mais importantes da cidade… Você e sua eterna falta de tato. Eu vou te contar…

– Você é tão panaca… e daí que ele é rico e poderoso? E vê se para de reclamar feito uma velha! Você não precisava nem ter vindo comigo, podia ter ficado em São Paulo… mas, vc insistiu em vir. – disse colocando a mala no porta malas, deu a volta e entrou no carro. – Só insisti porque eu sou um empresário e melhor amigo maravilhoso que queria apenas ajudar a melhor amiga e empresariada neste momento tão difícil quando o único parente vivo dela está entre a vida e a morte. Você devia me agradecer. – disse ele também entrando no carro e procurando pelas chaves.

– Aparentemente meu tio não é meu único parente vivo…- ambos ficaram um momento em silêncio enquanto Paulo ligava o carro e colocavam-no a caminho para a cidade. – Obrigada. Eu estaria muito mais surtada se vc não estivesse aqui comigo… – ele deu um meio sorriso. -E eu sei que o lugar é mesmo um pulgueiro, e sua bunda gorda está acostumada há um tratamento cinco estrelas… – ele gargalhou alto e ela riu. – Em primeiro lugar surtada deveria ser incorporado ao seu sobrenome. Em segundo lugar sim, minha bunda gorda está super habituada a lugares classudos, como aquela mansão que acabamos de abandonar… – disse com um suspiro. – E em terceiro lugar, lembre-se dos sacrifícios que eu faço por você quando quiser me dar um presente de aniversário, ou de dia do amigo… certifique-se de que tenha algo a ver com uma viagem ao exterior, Nova Iorque seria ótimo… num hotel cinco estrelas, por favor.

– Vou me certificar pode deixar… vou me certificar que eles tenham cadeiras bem grandes de cinco estrelas…

– Para caber minha bunda gorda? – gargalhou ele. – Para caber sua bunda gorda e aristocrática! – os dois riram ainda mais. – Agora, falando sinceramente Kael… eu acho que você deveria aproveitar a oportunidade que a vida está te oferecendo para… não sei… quem sabe… lembrar do seu passado?

– Isso é uma página virada na minha vida Paulo. Meu terapeuta e eu chegamos à conclusão que ficar buscando o passado me impede de viver o hoje.

– Não estou dizendo pra você ficar obcecada pelo passado nem nada. Mas sei lá… é uma ótima oportunidade. Pelo menos para descobrir o resto da sua família não? – ele olhou-a de soslaio.

– É… pode… ser… Não sei. Não posso focar nisso agora. O que mais importa é a saúde do meu tio agora… Quando ele melhorar, quando acordar… tenho certeza que ele vai me explicar direitinho toda esta história. – ficou em silêncio por um longo tempo. Paulo começou a achar que tinha passado dos limites dessa vez. A perda da memória era uma questão delicada para Kael, ela não gostava de tocar no assunto desde que resolvera ‘virar a página’.- Não estou descartando totalmente a ideia… – o encarou. – Mesmo que eu não me lembre de nada… não deixa de ser interessante saber mais sobre… minha família. Eu achei que eu sabia de tudo mas pelo jeito eu estava enganada. É frustrante isso… por que ele não me contaria…???- com um gesto brusco correu os dedos entre os cabelos. Paulo riu consigo mesmo, era tão típico dela, descontar a raiva no cabelo que ela mantinha curto porque ‘não tinha tempo para ficar se preocupando muito com isso’. Kael encarou a paisagem do lado de fora irritada.

Talvez, ela pensava, estivesse encarando as coisas de forma errada mesmo. Talvez devesse aproveitar as oportunidades. E quando tio Gamaliel acordasse… teria que ter uma conversa muito séria com ele. Afinal de contas, que motivos ele teria para ter lhe dito que ele era seu único parente vivo?

– Chegamos!. – disse Paulo.- Brincadeiras à parte eu espero que não seja um pulgueiro mesmo. Kael riu. Eles desceram do carro, apanharam as malas e entraram no único hotel da cidade.

Continua no post da semana que vem…

A Vida por Um fio…

Sentada na praia Kael se lembrava da tarde em que acordou do coma… no hospital… Toda dolorida. Mal conseguia pensar. A dor era só no que conseguia pensar naquele momento. De quanto doía cada cantinho do seu ser. Não conseguia se mexer e nem falar. Os olhos giraram para um lado, para o outro… mas na posição que se encontrava ela conseguia apenas ver o teto branco.

O que foi que aconteceu comigo? Eu morri? Não… se eu estivesse morta esta não estaria tão dolorida ela raciocinou. Então por alguns segundos desejou estar morta. Respirou fundo… respirar doía. Se eu não estou morta, onde diabos eu estou… num hospital aparentemente. Tentou mexer a cabeça, o corpo não obedecia… Ahhh meu Deus o que eu… eu… eu… quem sou eu?

Não se lembrava de nada… não sabia quem era, onde estava, o que havia acontecido que a deixara naquela situação desagradável. Meu Deus!!! Desesperou-se. Quis gritar, não pôde… os olhos se encheram de lágrimas o coração disparou, medo, raiva, frustração. Seria difícil descrever o que estava sentindo. Ouviu os aparelhos apitando loucamente e uma enfermeira entrou apressada no quarto.

– Mas o que pode ter… – a mulher passou por ela resmungando. – Meu Deus, disse finalmente reparando na paciente, você acordou! Logo chamou outras pessoas, chamou o médico enquanto falava alegremente com ela, checava os sinais vitais. – Doutor, ela acordou. disse assim que o médico entrou no quarto e pôs-se a examiná-la. Eles não demoraram a perceber que ela compreendia o que eles falavam mas não conseguia se comunicar muito bem… apenas através dos olhos, uma piscada, duas piscadas, sim… não… Tentaram a acalmar. Era esperado que seu corpo reagisse assim… ficara muito tempo em coma … meses…

Coma??? Mas como??? O que aconteceu??? Ela queria perguntar. Você sofreu um grave acidente de carro. O médico respondeu à sua pergunta não proferida. Fora da cidade. Ela havia sido trazida numa unidade móvel de tratamento intensivo. Seu tio ficaria feliz em vê-la acordada… Tio??? Que tio??? Lembrava-se muito bem do dia que Tio Gamaliel entrara no quarto do hospital… ele não viera no dia em que ela acordara demorou uns dois dias… ela ainda não conseguia falar, mas ficava a maior parte do tempo acordada agora, lutando com as dores. Depois ele explicara que… morava longe, viera o mais rápido possível… num jatinho fretado.

Lembrava-se do momento que o vira pela primeira vez… Ele entrara dentro do quarto, imensamente alto, o cabelo branquinho como flocos de algodão, mas nenhuma ruga no rosto, os olhos muito azuis, como duas safiras e gelados como pedras de gelo. A fitara por um longo e silencioso momento. Então você finalmente acordou? Soara a voz de trovão no quarto… e ele sorrira. E o olhar gelado se aqueceu e apesar de não se lembrar dele, sentiu-se em casa… em família… Tio Gamaliel cuidara de tudo então, da reforma na sua casa, para recebê-la mais adequadamente… médicos, tratamentos… dinheiro não era problema ele afirmava. Ela devia se preocupar apenas com ficar boa… levasse o tempo que levasse… ele estaria ali ao seu lado para o que ela precisasse.

Foram alguns anos, muitas dores e muita perseverança até ela recuperar o corpo baqueado. Voltar a falar, voltar a andar… voltar a trabalhar… poder morar sozinha novamente. Tio Gamaliel praticamente se mudara para sua casa, e havia as enfermeiras e outros funcionários… pessoas para limpar a casa, cozinhar, arrumar o jardim… mas de vez em quando tio Gamaliel tinha que fazer algumas viagens, porém, naqueles anos difíceis ele nunca se ausentara por mais de uma semana.

Foi ele quem lhe contou a história de sua vida, mostrou fotos… Ela havia nascido em São Paulo, os pais haviam morrido há dez anos, a tempo ainda de vê-la se tornar uma pessoa bem sucedida. Pai tivera um câncer grave de garganta e a mãe… morrera um ano depois de tristeza e saudade do amor de sua vida. Era filha única. Estudara fora do país por muitos anos, voltara após a morte do pai para cuidar da mãe e depois resolveu ficar por aqui quando a mãe também morreu. Ela queria se lembrar, queria saber mais… ficou deprimida.

Foi tio Gamaliel que insistiu para que ela fosse ao terapeuta e foi lá que ela superou a ideia de ficar tentando se lembrar quem era, que resolvera abraçar o futuro, não desperdiçar a segunda chance que a vida lhe havia oferecido. Era uma grande artista tio Gamaliel dissera… devia voltar a pintar, esculpir… ela recomeçou timidamente a principio. Depois as mãos pareciam fazer o trabalho sozinha e ela passava horas e horas imersa na sua arte, no mundo da criação. Uma primeira exposição organizada por tio Gamaliel e um novo empresário… depois de quatro anos afastada dos holofotes e o sucesso…

Acho que não precisa mais de mim agora… ele dissera. Pode tocar sua vida adiante. Se quiser me visitar… sabe onde me encontrar. Dissera anotando o endereço na agenda. Mas ela nunca visitava porque pelo menos uma vez por mês tio Gamaliel vinha a São Paulo e passavam o dia juntos.

Tio Gamaliel era um homem tão grande e forte… jamais poderia imaginar que isso aconteceria com ele. Um derrame… uma veia milimétrica, um coagulo de sangue e lá estava ele… prostrado naquela cama… imóvel… Colocou as mãos na cabeça e correu os dedos pelos cabelos. Sentia-se tão desnorteada agora quanto sentira-se naquele dia que acordara do coma. Se ao menos ele estivesse acordado, se ao menos… se…. Mas não podia desabar agora, tinha que ser forte. Ele iria acordar ela estava certa… mais cedo ou mais tarde e então ele ia ficar melhor e tudo poderia ser esclarecido. Ele mesmo lhe contaria toda a história… e ia lhe explicar porque deixara de fora, de tudo o que lhe contara anteriormente, que ela tinha mais familiares além dele.

Decidida ele ergueu-se e resolveu voltar para a casa que hospedaria ela e seu empresário e amigo. Que ela por sinal abandonara sem nenhuma palavra e sem nenhuma cerimônia. Bateu a areia da roupa, entrou no carro e fez o caminho de volta… tinha que pedir desculpas ao Paulo quando lá chegasse…

Continua no post da semana que vem… Fiquem ligados…

O Menino, a Loucura e a possessão (Parte III)

Ele estava cansado… Não sabia dizer quanto tempo se passara desde a última vez que ficara consciente. Se lembrava dos sonhos entretanto, dos pesadelos para ser mais específico.

A garganta doía… como se tivesse gritado por dias e dias… e ele estava com o rosto e os braços e o torço machucados… marcas horríveis e sangrentas eque pareciam ser de… arranhões. Ergueu as mãos que pareciam pertencer a um ancião… magras, enrugadas, pálidas, trêmulas…

“Olá, Artur.” um homem alto vestido de branco entrou onde ele estava, olhou ao redor, supôs que fosse um consultório. “Eu sou o seu médico… meu nome é Paulo.” – disse olhando fixamente para ele. Então este deve ser meu médico… pensou… mais um médico, que diferença isso vai fazer. “Depois de avaliar seu caso com cuidado eu achei melhor nós mudarmos um pouquinho o seu tratamento… espero ter resultados melhores assim…” sorriu.

Já passei por tantos ‘métodos de tratamento’. Queria dizer para o jovem médico que não faria diferença. Como explicar para um homem da ciência que ele não era louco? Quantas vezes já havia tentado… perdera a conta. “você está entendendo o que eu estou dizendo Artur?”. Abriu a boca para falar mas não saiu som nenhum… garganta muito seca, os lábios rachados…”A… A-a-água…” conseguiu falar, num som estrangulado. “Ahh sim… claro!” – encheu uma caneca de plástico de água que eu engoli rápido e me engasguei… “Vá com calma…” tomei toda a caneca. “M-m-mais…” ele me serviu outra caneca, mais outra quando eu pedi mais. “Melhor agora?” ele perguntou com um sorriso. Eu balancei a cabeça afirmativamente.

O que era ‘estar melhor’ na concepção dele? Eu não sabia o que era estar bem há tanto tempo. Pequenas coisas, como uma caneca de água fresca me pareciam coisas luxuosas. “Há quanto tempo estou aqui?” a pergunta saiu antes que eu pensasse direito nela, mas a voz saiu estranha… mal reconheci minha própria voz, minhas cordas vocais deviam estar piores do que eu imaginava.

“Há três meses… Seus pais o transferiram para cá porque acreditam que aqui você terá um tratamento melhor. Temos os melhores equipamentos, temos os melhores médicas e técnicas inovadoras…” ele ficou ouvindo o médico falando de coisas que não o interessavam.”Eles, não vieram… me ver??” perguntei interrompendo a falação dele. “Eles vieram há umas semanas mas você estava sedado… aconselhamos aos seus familiares a não fazerem visitas por enquanto, nesse período de adaptação.” Eu fiz apenas que sim com a cabeça… já imaginava isso. Não era a primeira vez que meus pais me mudavam de clínica. O que me espantava era eles ainda não terem desistido de mim…

Esse pensamento fez meus olhos se encherem de lágrimas. Eu que achei que não tinha mais lágrimas para chorar. Eles podiam simplesmente me largar neste lugar e simplesmente se darem por satisfeitos de não ter mais que lidar com aquele horror… mas não, eles ainda tentavam me ajudar… do modo deles claro. Eles não tinham ideia do quanto isto era importante para mim. “Não fique triste, você poderá ver seus familiares em breve. Estou certo disso.” disse com um sorriso apaziguador.

“Eu não sou louco doutor…” minha voz soou fracamente.”Claro que não. Não chamamos ninguém de louco aqui…” disse ele condescendente.”O senhor acredita no mal doutor?” eu ouvi minha própria voz ganhando forças, juntamente com meu medo. Mas meu medo não era, naquele momento, maior que a minha fúria, nem que a minha vontade de ser ouvido. “Acredita em demônios? Acredita no diabo?”.

O médico ficou um longo tempo me olhando…”Respeito todas as crenças. Mas como um homem da ciência devo dizer que sou bem cético quanto à existência de um… mundo espiritual.” Assenti lentamente… sentindo a raiva se transformar num misto de tristeza e angústia. “Então, o senhor não pode me ajudar doutor. Eu não sou doente… eu não sou louco. E-eu preciso de ajuda… mas n-não de ajuda médica.” eu já não conseguia impedir que as lágrimas corressem livremente pelo meu rosto, eu não sabia quanto tempo eu tinha ainda para tentar falar com aquele médico… esperando alguma humanidade, alguma piedade dele.

“E-eu preciso de um padre, u-um pastor, u-m rabino, um feiticeiro… um sacerdote de alguma espécie… alguém que acredite em mim e que me ajude. Que me liberte dessa coisa que me atormenta.” o médico sentou-se muito calmamente e ainda observando-o perguntou. “E o que é essa coisa que te atormenta?”.

“E-eu… n-não… n-não quero falar s-sobre isso… n-não quero, p-por favor.” novamente aquela sensação horrenda de não estar mais só entro do próprio corpo se apossava dele… seu tempo estava se esgotando. “Por favor doutor… ” ele se apressou em falar, as palavras se enroscando umas nas outras. “Por favor, não precisa acreditar em mim, apenas encontre uma pessoa que possa me ajudar, por favor eu imploro. Eu não tenho mais tempo… eu… não…” calou-se. De novo aquela sensação. Ele era apenas um espectador… ele podia ver tudo o que acontecia como quem assistia um filme. Incapaz entretanto de interagir.

O médico assistiu a transformação do paciente diante dos seus olhos. Num instante ele pareceu triste, de uma maneira quase trágica e então desesperado, apressado em dizer alguma coisa e então… com medo? Pânico! E então ele parou de falar, os olhos ficaram vazios e então as pupilas se dilataram… e ele cruzou as pernas, recostou-se na cadeira, as mãos postas sobre as coxas e sorriu. Um sorriso de desdém, um sorriso quase… malvado. Olhou o médico bem nos olhos e não disse mais nada.

O jovem médico então “Olha Arthur, eu sei que é algo complicado de lhe pedir, mas eu preciso que confie em mim. Vamos começar do zero certo? Eu eu tenho muita confiança que esse novo tratamento vai ajudar você. Você me disse que precisa de ajuda e é isso que eu estou fazendo… Mas, você precisa confiar em mim ok?”

O rapaz sentado então emitiu uma risada sinistra. “Ahhhh… a humanidade.” disse com voz rouca rindo novamente. Era um som acre, agoniante. O médico não sabia exatamente explicar porque, mas o incomodava aquele riso. E o tom da voz ligeiramente diferente… como se ecoasse… em algum outro lugar. “Não pode ajudá-lo… Ninguém pode… ele é meu. E vai se meu… PRA SEMPRE!”. Então todos os vidros do consultório, mais os vidros do corredor estilhaçaram-se em incontáveis pedacinhos… até mesmo as lentes dos óculos do médico… elas caíram espatifadas aos seus pés… ele olhou para baixo a tempo de vê-las caindo.. os tímpanos zunindo de leve pelo barulhão. 

Quando tudo novamente era silêncio… ele ergueu novamente os olhos para o paciente, que agora não estava mais sentado na cadeira, mas em pé bem na sua frente… os olhos negros… o sorriso animalesco de soslaio… “Como… um homem da ciência explica isso??? Hum?” a voz horrenda fez um arrepio correr-lhe pela espinha…

Do lado de fora no corredor os enfermeiros se recuperavam do susto… “Meu Deus do céu o que foi isso??” alguém perguntou. “Estão todos bem??? Alguém se machucou?” outra pessoa perguntou. O enfermeiro e a enfermeira que haviam há algumas noites presenciado o grito do paciente, que agora estava com Doutor Paulo dentro do consultório se entreolharam. Ele fez o sinal da cruz três vezes… “Cada dia que passa esse lugar está mais estranho…” disse ele olhando para ela. “Se eu não precisasse tanto do emprego eu vou te contar viu…” Ela abriu a boca para dizer algo mas foi interrompida quando de dentro da sala todos puderam ouvir  a voz do médico… “Ahhhhh meu Deus… Não!!! Não!!! NÃOOOOOOOO!!!

Continua…

Nós gatos… Um segundo encontro

A Quermesse continuaria durante todo o mês… pensou Manuel, espreguiçando-se no sol depois de se empanturrar com restos de comida que achara. Ele esperava sinceramente que o batalhão do seu dono ficasse na cidade até o final das festividades. Ele amava quermesses.

A noite nem tinha começado e ele já estava de barriga tão cheia, que sua primeira inclinação era se deitar numa sombra qualquer e tirar um longo cochilo. E era justamente isso que ele ia fazer então… algumas pessoas se sentaram em volta da grande fogueira e começaram a  tocar algumas músicas… ele sentou-se onde estava mesmo e começou a ouvir, uma canção e então outra. Quando a segunda canção terminava ele levantou os olhos para um telhado vizinho  e a viu… Morena… O violeiro então começou a dedilhar a canção… 

Índia, seus cabelos nos ombros caídos,
Negros como a noite que não tem luar;
Seus lábios de rosa para mim sorrindo
E a doce meiguice desse seu olhar.

E ele de repente se viu de olhos grudados na visão de Morena, serena e superior assistindo a tudo que se passava ao redor… impassível como uma estátua. Tanto quanto os seus ouvidos estavam grudados àquela melodia, ao mesmo tempo bonita mas também triste. Sorriu e adiantou-se, saindo das sombras para que ela pudesse vê-lo. Morena imediatamente o avistou e ele saltitante e dançarino pôs-se a se exibir para ela cantando enquanto escalava a casa para alcançar o telhado onde ela estava:

Índia da pele morena, sua boca pequena eu quero beijar.
Índia, sangue tupi, tens o cheiro da flor.
Vem, que eu quero te dar todo meu grande amor!

Ela, com os olhos arregalados com tamanha audácia observou quando ele alcançou o telhado e começou a dançar em volta dela… ainda cantando… a voz não era das melhores, ela pensou… mas o atrevimento da criatura chegava a ser, engraçado… E ela não foi muito bem sucedida em esconder o meio sorriso.

Quando eu for embora para bem distante
E chegar a hora de dizer adeus,
Fica nos meus braços só mais um instante;
Deixa os meus lábios se unirem aos seus.

Ele olhou-a bem nos olhos… e realmente ficou triste por dentro pensando que… em breve sim, seu dono ia deixar a cidade e ele iria em breve embora… talvez para bem distante. E não poderia mais ver a linda Morena. Ela percebe a singular mudança no olhar dele e ficou curiosa… e então deixou-o se aproximar mais e sentar-se ao seu lado enquanto o violeiro terminava a canção…

Índia, levarei saudade da felicidade que você me deu.
Índia, a sua imagem sempre comigo vai
Dentro do meu coração, flor do meu Paraguai.

Boa noite linda morena… ele disse olhando-a nos olhos. Boa noite… ela respondeu com um sorriso.

Continua…

Menina Boa… Menina má…

Saiu do salão, saiu apressadamente da mansão. Pela porta da frente. Procurou as chaves do carro no bolso e sem pensar novamente entrou no automóvel e saiu sem direção sem se voltar quando uma voz conhecida repetidamente chamou seu nome.

– Kael!! Kael!!! Onde você vai??? – Paulo correu atrás do carro mas não adiantou, Kael não parou, pareceu sequer ouvi-lo e continuou dirigindo. – Onde diabos você vai??? – ele gritou para o nada. – Sua louca…

Kael precisava de ar. Precisava pensar, mais que isso, precisava de um lugar isolado para ficar sozinha com seus pensamentos e tentar compreendê-los melhor. Numa cidade tão pequena no meio do nada isso não parecia tão difícil. Não era como São Paulo. O único modo de ficar só em São Paulo era se trancar dentro do seu apartamento. Ainda assim não se ficava completamente só não é mesmo. Estava-se cercado pelos seus vizinhos e pelos milhões de outros seres humanos nas ruas.

Estar sempre cercada de pessoas desconhecidas sempre a incomodara muito. Nesta cidadezinha não. Desde que ali chegara não se lembrava de ter ficado só sequer um minuto. Todos querendo saber, quem ela era, de onde viera. Não que ela se espantasse… afinal, ela era a forasteira, a novidade. Mas até mesmo seu melhor amigo Paulo estava a sufocando com tanta solicitude. Ela precisava de ar. Precisava de um minuto para se reagrupar.

Duas, três, quatro, cinco, seis curvas e já estava novamente na estrada que a trouxera àquele lugar. A cidade era minúscula. Seis curvas, menos de três quilômetros e estava já fora dela. Havia avistado uma praia deserta quando passara por ali… dirigiu mais uns minutos e avistou a prainha… algumas pedras… ninguém à vista. Era exatamente disso que ela precisava naquele momento. Parou o carro num recuo da estrada e caminhou até a areia sem se preocupar em tirar os sapatos e pôs-se a caminhar.

Okay… ela pensava. Minha vida está de pernas para o ar no momento… Há dois dias eu estava na minha casa, eu tinha meus afazeres, meus planos, meus quadros e esculturas prontos, uma exposição à caminho… as coisas eram bem simples. Então o telefone toca e alguém deste malfadado lugar me liga e diz que meu tio Gamaliel, meu único parente vivo, minha única família neste mundo todo… sofreu um grave Acidente Vascular Cerebral e estava entre a vida e a morte numa cama do único Hospital da Cidade.

Daí eu chego nessa cidade… minha única ideia era colocar meu tio numa Unidade de Tratamento intensivo Móvel e levá-lo de volta comigo para São Paulo onde ele certamente teria um tratamento melhor, mas descubro que não posso sem colocar a vida dele em risco… pelo menos não agora. E é então que as coisas ficam estranhas. Todo mundo me confunde com outra pessoa. Uma outra sobrinha do tio Gamaliel, eu nem sabia que ele tinha outra sobrinha além de mim…

“Agora nesse mundo, do nosso sangue… somos apenas eu e vc minha querida…” ela se lembrava de ele ter-lhe dito estas exatas palavras quando ela acordara do coma de meses depois do terrível acidente que ela sofrera dez anos antes.

A sua chegada e as suas diversas semelhanças físicas com ‘a outra’ haviam causado a maior polvorosa na cidade. As pessoas a cercavam, a bombardeavam com perguntas que ela não sabia responder. E a única pessoa que tinha as respostar estava em coma no único hospital da cidade.

Desde o acidente,  ela não se lembrava de nada… nada mesmo… da sua vida antiga. Tudo que ela sabia sobre ela mesma, fora tio Gamaliel que contara para ela… Um acidente de carro, um ano em coma no hospital. Acordara sem saber quem era, onde estava e o que tinha acontecido.

Tio Gamaliel mandara reformar toda a casa com elevadores e rampas, três anos de fisioterapia e exercícios diversos para conseguir voltar a andar… Depois de muita terapia ela decidiu que tinha que deixar para trás a vida de antes, a vida que ela não se lembrava, para poder continuar vivendo… Passaram-se dez anos, ela estava finalmente feliz com a própria vida… Quem diabos era essa tal de Cecilia? Tanta gente falando dela… comparando-a com ela… dizendo tantas coisas a respeito dela… grande parte do que era dito sobre essa tal de Cecilia não era nada legal Ela não parecia ser uma boa pessoa… Talvez fosse a o momento de parar de sentir-se acuada e aflita e descobrir um pouco mais sobre essa pessoa… 

Continua num post qualquer… fiquem ligados…

A menina e o piano

Kael entrou na sala imensa… ainda espantada com o tamanho e com a opulência do aposento. Tudo era imponente, tudo gritava ‘eu custei muito caro’. Parecia que fora ornamentada com o propósito de fazer as pessoas se sentirem fora de lugar… Não era qualquer pessoa que conseguiria se sentir à vontade naquele lugar… Kael certamente não era uma dessas pessoas.

Atravessou a sala a passos hesitantes, devagarinho… olhando em volta, olhando os lustres, as luzes, o teto, os quatro na parede… Era um salão de festas… quase não tinha móveis na verdade, alguns sofás, algumas espreguiçadeiras junto às paredes que não eram perfeitamente retas pois o cômodo era ligeiramente curvo… todas as paredes aliás. Parecia mesmo um salão daqueles de filmes, de contos de fada. A mansão toda era impressionante, mas um salão como aquele… ela esperava encontrar dentro de um castelo na Europa e não numa casa… por mais impressionante que a casa fosse.

Mas o que mais encantava, quase que hipnotizava Kael naquela sala imensa… era o imenso piano de cauda que ficava bem no centro do salão. Ela caminhou lentamente até o instrumento. Tocou-o de leve. Era um piano magnifico… Atrevidamente sentou-se no banco e abriu o tampo das teclas… E então subitamente foi tomada por uma sensação gigantesca de familiaridade. Como se já tivesse feito aquilo um milhão de vezes antes na vida… Desde que chegara na cidade essa sensação de deja vu era mais e mais frequente.

Tocou de leve as teclas… Se u soubesse tocar, ela pensou. Será que…??? Juntou as mãos, posicionou-as sobre as teclas e viu os dedos se moverem como se fossem as mãos de outra pessoa e o som melífluo invadiu o ambiente, seus ouvidos e a encheu de espanto e emoção. Uma emoção que ela mesma não conseguia entender ou explicar. Não conseguia parar de tocar também. Fechou os olhos e concentrou-se nos sons, as mãos, magicamente continuavam tocando. Era como se estivesse num sonho. Não sabia de onde conhecia aquela canção, não sabia nada, nada existia, nem ela mesma existia, estava apenas flutuando entre o real e o irreal ao som daquela canção.

E então tocou os últimos acordes e quando terminou… sentiu novamente o mundo materializar-se embaixo dos seus pés com a chegada do silêncio. Abriu os olhos… espantada com o que acabara de acontecer. Respiração ofegante. Baixou o olhar a fitou as próprias mãos com assombro. Procurando uma resposta que ela nem sequer conseguia formular. Então ouviu palmas soando da entrada da sala e virou-se abruptamente.

– Bravo! disse Franco adentrando o salão enquanto continuava aplaudindo com um meio sorriso sarcástico no rosto. – Eu não sabia que você podia tocar piano tão bem. Disse parando ao lado do piano cruzando os braços, em seu terno alinhadíssimo, e a encarando sério com aqueles imensos olhos azuis, a barba pomposa… ele definitivamente se encaixava perfeitamente com o opulento cômodo.

– Nem eu sabia. Disse Kael, num tom abafado, tenso. Fechou o tampo do piano e ergueu-se rapidamente. 

– Não precisa parar. Franco se apressou em acrescentar, descruzando os braços e colocando as mãos nos bolsos da calça. Por um instante pareceu a ela que um quê de arrependimento passou pelo rosto dele. – É uma música linda. Uma das minhas favoritas na verdade…

– Sim, muito bonita. – disse ela trêmula. – Você toca muito bem. Minha mãe me colocou para aprender e eu estudei muito tempo mas nunca tive nem talento nem paciência para o piano. Mas pelo modo como toca posso dizer que você estudou muito mais tempo e com muito mais afinco que eu.

– Eu… não… saberia dizer. Ele olhou-a sem compreender. – Eu não me lembro de muita coisa da minha vida. Ela ergueu a manga da camisa mostrando a imensa cicatriz. – Estive num acidente sério há alguns anos. Os médicos me disseram que minha sobrevivência foi um milagre. Infelizmente eu não me lembro de nada da minha vida antes do acidente. Então eu não saberia te dizer quanto tempo eu estudei, ou se eu sequer cheguei a estudar piano na vida. Eu…  – ela olhou assombrada novamente para o instrumento.  – Nem sabia que eu podia tocar assim… sorriu nervosamente. – Eu nem sei o nome dessa canção.

Franco fitou-a, estupefato por um longo momento. Incapaz de dizer uma palavra sequer. O silêncio prolongado era incômodo. Então Kael sentiu necessidade de dizer alguma coisa. – Desculpe-me pelo atrevimento. Eu… não devia ter mexido no piano.

– Não tem problema. disse Franco com uma voz pequena. – Este piano ficou calado por muito tempo. Tempo demais. Sinta-se à vontade para tocar quando quiser. Ele queria fazer-lhe mil perguntas, mas sabia no fundo que não obteria respostas. Então conteve-se.

– Obrigada. Com licença… disse a mulher e se retirou. Precisava ficar só, precisava processar o turbilhão de emoções e pensamentos que giravam fora de controle dentro dela. Precisava de ar!

Continua no post da semana que vem…

O menino, a loucura e a possessão (Parte II)

A enfermeira estava impaciente enquanto o médico examinava o paciente atentamente. “Eu não vejo nada de anormal”. “Eu juro para o senhor que quando eu sai do quarto ele estava apagado, e então ele gritou… um grito horrendo, como eu nunca ouvi antes doutor, não era para ele estar gritando com tanto anestésico nele. Chega a me dar calafrios lembrar do grito…” O médico continuava examinando o rapaz. “Pode ter sido outro paciente…”. “Só existe ele nesta ala doutor”. “Este hospital é muito grande… pode ser apenas um eco… de uma outra ala”.

Ela apenas olhou para o médico… “E como o senhor explica o que eu e o outro enfermeiro vimos quando chegamos aqui? Ele estava se debatendo. Veja os braços dele, ele se contorceu de uma forma… como ele conseguiu se contorcer daquela forma e se arranhar todo deste jeito? Não era humano…” acrescentou num tom muito baixo, e fez uma oração em silêncio… Primeira vez em não sabia quantos anos que ela buscava alguma proteção divina. “O outro enfermeiro sequer quer voltar a trabalhar neste hospital. Pediu demissão!”. O médico deu de ombros. “O senhor deveria ver as imagens das câmeras”!

O médico terminou de examinar o paciente que desmaiara, aparentemente de exaustão e não por conta do remédio. “Aumentei a quantidade da medicação, ele não deve dar mais problemas”. Mas ele também ficara curioso ao ouvir a enfermeira falar dos malabarismos e contorcionismos do paciente. As amarras deveriam terem-no impedido de se machucar daquela forma.

Riu-se mais uma vez enquanto caminhava pelo corredor… até onde ia a crendice das pessoas. Estava cansado de ver casos atribuídos a problemas espirituais e eram casos neurológicos. Já vira muitos médicos entrando nessas neuras e se tornando fanáticos religiosos. Ele não iria cair nesta armadilha… Jesus Salva! Diziam os crentes… a Ciência Salva… ele pensava consigo mesmo.

Terminou de fazer a ronda. Gostava do período noturno, do silêncio, da calmaria… Apesar de que estava sobrecarregado de trabalho, como todos os médicos deste país que ainda se atreviam a amar a profissão. Depois de andar por quase todo o hospital e ver todos os seus pacientes sentiu fome, foi jantar… Com sorte nenhuma emergência aconteceria e ele conseguiria comer em paz. Nenhum surto psicótico, nenhum paciente precisando dele…

Não era sempre que ele conseguia, mas naquela noite ele conseguiu jantar em paz. Consulto o relógio… estava quase na hora de mais uma ronda… Mas… estava tudo tão quieto. E como uma pulga incômoda o pensamento do vídeo, da filmagem do que tinha acontecido com o paciente durante o surto, estava lá plantado na sua cabeça… Caminhou até a sala das enfermeiras. “Deixa eu ver o vídeo do paciente… Fiquei curioso… como ele pode ter se machucado daquele jeito.” disse ele em tom calmo. Ela se levantou, pegou um molho de chaves e saiu da sala o médico a acompanhou. “Eu já disse ao senhor… Devíamos chamar um padre, um pastor, um rabino, um pai de santo… alguma coisa. Não era humano…” ele deu de ombros.

Os dois entraram na sala, ela procurou um tempo e colocou o vídeo para rodar. Ela não queria ver novamente aquela cena. O que ela vira… e ouvira… já havia sido mais que suficiente. Posicionou-se atrás do monitor observando as feições do médico que a principio refletiam calma e uma leve curiosidade.

Então, assistiu com uma certa satisfação viu as emoções mudarem e passarem como um flash pelo rosto do médico. Primeiro uma certa descrença. Depois os olhos de arregalaram espantados. E a enfermeira viu com clareza o terror se instalarem naqueles olhos. Viu o suor escorrendo pelas têmporas do médico… enquanto ele gaguejava… “Meu Deus, como é que…??? Isso não pode ser… Não é possível… não é…”. “Não é humano…” ele completou. E ele ergueu para ela os olhos aterrorizados.

“Não me leve a mal doutor… eu não sou, nunca fui a pessoa mais religiosa do mundo… mas coisas assim…” disse apontando para as costas do monitor “faz a gente deixar de duvidar da existência do além…” 

O médico ficou mudo por alguns instantes. Não sabia o que dizer. Não sabia o que fazer com o que acabara de ver nas imagens gravadas. Tinha que haver uma explicação racional, uma explicação científica para o que os seus olhos tinham acabado de testemunhar.

A forma como ele se contorcera, amarrado à cama, não era humano, e os olhos revirados… e… ele tinha que convir com a enfermeira, não era para ele estar acordado fazendo tudo aquilo com aquela quantidade de medicação dentro dele. Abriu a boca para falar alguma coisa quando um enfermeiro entrou esbaforido na sala. “O homem acordou de novo… tá gritando que nem… Deus me livre!” Fez o sinal da cruz três vezes… O médico e a enfermeira levantaram apressados e com o coração na boca saíram correndo na direção do quarto do paciente…

Continua numa próxima postagem qualquer…